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Ela
nunca quis ser como tu, penso que nem queria.
Entende,
é fácil. Tu és feita de ti e ela era feita dela. Bem, para te
dizer a verdade, nestes últimos anos, sem realmente se aperceber,
perdeu-se. Por ai, penso que ninguém se deu realmente conta. Ou não
quiseram saber, tal como ela.
Ainda
se ria das nossas piadas parvas, enchia-nos a pança até não
aguentarmos mais. Quem poderia desconfiar que já não era quem era
quando se olhava ao espelho. Fazia-o todos os dias como um ultimato,
o derradeiro desafio dentro de um prazo de umas horas nocivas...
acordar e olhar-se ao espelho, ao próprio reflexo, já enjoada e de
cabeça a roda. Odiava-se mais que alguma vez achou que podia.
Nós
lhe tirávamos tantas fotos, ainda as tenho que te mostrar, e ela
sempre a fugir.
“-Sentia-se
sempre mais confortável por detrás da câmara do que em frente.”
“-Pois
era, pois era..., com o espelho que era a mesma coisa..., mas já não
era o desafio de acertar com o eye-liner nas pestanas, mas de
controlar o desejo incumbido de se arrancar a pele dos ossos.
Sei
que esta conversa te faz muita confusão nessa cabeça novinha, mas
todo e qualquer médico foi bem claro: ela não era maluca, bem, pelo
o contrario,- falaram em depressão reactiva. Mas aquele brilho,
aquele brilho que só ela sabia ter no olho, a meio desse ano
desvaneceu-se e ninguém o encontrava quando ela se enfrentava ao
espelho.
Penso
que ela própria entrou nesse jogo do faz-de-contas-está-tudo-bem e
quem era atento notou bem a mudança nos olhos de azeitona. Ela não
queria ser ela. Não queria ser feita de outra matéria, como matéria
feita de ti, só queria que o vazio que sentisse fosse preenchido com
qualquer coisa, nem que fosse com mentiras.
Chegou
o dia em que ela virou a casa do avesso, limpou a casa de cima
abaixo, livrou-se dos excessos. De roupas, panelas, fios e cabos que
não faziam sentido estarem ali. Foi ida e volta para os contentores
de lixo carregada com dois ou três sacos de uma vez. Ela estava a coleccionar cada objecto, cada memoria que lhe causava o rosto ficar
molhado, e não era suor, eram outra vez aquelas lágrimas que ainda
não conseguia perceber donde vinham.
Culpou
muitas vezes o tapete branco estendido na sala onde os gatos gostavam
de afiar as unhas. O mesmo tapete que testemunhou a ele ligar para o
112 enquanto o corpo dela deixou de ser dela, enquanto tudo deixou de
ser nada, enquanto que a única coisa que realmente queria era poder
dizer o nome dele. Limpar-lhe a preocupação do rosto. “ -Está
tudo bem, estou consciente.” - esforçava-se de dizer, enquanto com
a calma que ele sempre teve lhe batia o rosto com uma mão doce e com
a outra segurava o telefone: “ -A minha namorada não está bem...
não sei! … rua … sim, é este numero.”
Naquela
tarde após as costas não aguentarem mais, ela sentou-se na carpete
com a gata no colo e a embebedar-se em café e fixou de esgana para o
tapete branco da sala, Cada vez tinha mais raiva daquele objecto. Cada
fio daquele tapete recorda-lhe que teve 41% de não sobreviver, de
haver alguém que teria de tirar o corpo pesado dela daquele T1.
Mas
o que mais a atormentava era que se o pior tinha acontecido naquele
tapete branco, ela nunca mais poderia-te ver, e nem a ele. Beijar-lhe
a boca, encostar a cabeça dela no seu ombro, pentear-te os fios
vermelhos do cabelo. O pior disso tudo não haveria outra
oportunidade, porque depois daqueles 41% não havia absolutamente
nada. Essa foi uma das verdades que ela não conseguia aceitar.
Aos
31 anos, a tua irmã descobriu que todos os valores, tudo o que ela
acreditava, eram mentira e assim prescreveram-lhe calmantes e
antidepressivos.
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